sábado, 17 de janeiro de 2015

O Irmão Alemão

carta maior
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O Irmão Alemão

Chico trabalhou durante dois anos nesta obra, fez pesquisas para identificar e localizar o mítico irmão que foi criado na Alemanha Oriental.


Léa Maria Aarão Reis - umacoisaeoutra.com.br
Flickr/ Focka/Rennan Teixeira/
No mundo de agora todos querem aparecer dizendo e declarando qualquer bobagem. Opiniões que não admitem dúvidas; observações de todos os tipos, reclamações, xingamentos, celebrações as mais estranhas, contestações (muita contestação), gritos, insultos, argumentos, elogios gratuitos, polêmicas, declarações. Tudo sinaliza para o “eu estou aqui! não me esqueçam no meio da massa anônima, por favor!”
 
É mesmo muito barulho, eu não diria por nada, mas por pouca coisa.
 
Nesta atmosfera tensa e histérica, a postura de Chico Buarque de Holanda é um oásis no meio da algaravia estimulada pelos aplicativos de comunicação instantânea, blogs, sites, pelas contas nas redes sociais, pela velha mídia e comentários da internet.
 
No quase infinito palco dos narcisistas, Chico é um pária. Discreto, quieto, calado, põe sua obra na rua e se retira. Salvo em raras ocasiões nas quais ele surge, carne e osso, participando de um ou outro evento literário ou show musical.
 
Neste verão, por ocasião do lançamento do seu mais recente romance, O irmão alemão (Companhia das Letras/70 mil exemplares na primeira edição), depois de Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite derramado (2009) e de levar para casa três prêmios Jabuti, Chico novamente se recolhe deixando que seu trabalho fale por si mesmo. Ele não concede entrevistas.
 
Não se trata de síndrome de Greta Garbo. Chico quer ser e é, um homem comum – mas com a qualidade de saber, como poucos, trabalhar as palavras com simplicidade e sem pernosticismos, na música e na literatura. E face sua timidez monumental, costuma passar temporadas em Paris, onde pode circular, anônimo, dando um tempo para o assédio, no Leblon, onde mora.
 
No mais recente livro, ele mescla realidade com ficção, como diz o crítico literário José Castello sobre O irmão alemão, “... o romance se desdobra em duas chapas de tamanho e forma semelhante — ora encaixado em fatos, nomes e documentos que prometem o real, ora erguido sobre as sombras não menos verdadeiras da imaginação. (…) Fantasmas — visões — se espalham pelas páginas.”
 
Os seus seis irmãos, por exemplo, foram comprimidos (como diz Chico) no livro num único irmão-personagem: o Mimmo, alvo de rivalidade e competição. Ele próprio é o Francisco de Hollander. A mãe, Maria Amélia, se transformou na super companheira do marido e numa mamma italiana, a Assunta, a quem estava reservado cuidar dos livros que forravam todas as paredes, até o teto, de todos os cômodos da casa da Rua Buri – até as do banheiro. É assim que o autor vê, no livro, os seus pais:
 
“Olhando-a como a uma empregada nova na casa, papai lhe ordena que busque na geladeira uma garrafa de Liebfraumilch, um vinho do Reno que ele só aprecia por causa do nome. E bebe a garrafa inteira, e recita todos os sonetos de Rilke, e canta a valsa do filme O Anjo Azul, e tarde da noite ainda escuto a sua voz de barítono no quarto, entoando aquela cantiga de ninar que diz guten Abend, gute Nacht: boa tarde, boa noite.”
 
Para relatar a vida da sua família numa chave um pouco real um pouco fantástica semeada com algum non sense (de que sempre gostou) e das doses de seu humor inofensivo - uma das características mais presentes nos seus livros – Chico relembra como era doce a sua cidade de São Paulo nos anos 60, antes do golpe de 64. Uma cidade, e um país governados para aqueles 30% da população brasileira da casa grande. O que tornava tudo mais doce e confortável para a burguesia, antes da massificação. Ou da inclusão, se preferir.
 
A sua busca pelo meio irmão alemão nunca conhecido e nascido na Berlim dos anos 30, quando seu pai, o historiador Sergio Buarque de Holanda, ainda solteiro, foi correspondente de um jornal brasileiro, O Jornal, é o seu tema central.
 
Chico trabalhou durante dois anos nesta obra. Foi à Alemanha algumas vezes e contou com a ajuda de pesquisadores contratados pela sua Editora para identificar e localizar o irmão mítico criado na RDA, na zona ao leste de Berlim. Por coincidência, (?) Sergio Günthern, morto nos anos 80, foi também, como ele próprio, compositor e cantor, gravou inúmeros discos e trabalhou na TV da Alemanha oriental. “Tinha carisma”, comentou a neta dele, quando encontrou e conheceu Chico, lá.
 
Neste quinto romance, é narrada a experiência familiar, a vida dos pais e dos sete filhos na casa da Rua Buri, próxima da Avenida Paulista, uma casa com jardim na frente, sem cercas nem grades para defendê-la de assaltos e da violência que ainda não assombravam a vida dos habitantes. Ele recorda o mitológico Zillertal, a famosa casa de chope alemã, uma referência da época. Lembra o cinema Majestic da Augusta, e do bar Riviera, da Henrique Schaumann, onde comprava cigarros; do inesquecível Teatro da Record, na Consolação e do único bistrô francês paulistano, nesse tempo, no Largo do Arouche, o Casserole, em funcionamento até hoje.
 
Outra amostra da simplicidade e do humor do texto enxuto de Chico contando uma das suas viagens (de pesquisas) a Berlim é esta. Realidade? Fantasia?
 
“De chegada ao hotel, me obriguei a passar no business center a fim de pôr em dia a correspondência com os leitores da minha página. Sentei-me ao lado de uma inglesa sessentona, que cumprimentei com discreta galanteria, mas assim que digitei minha senha no computador, a tela foi invadida por mulheres peladas de todas as cores. Surgiram do nada ofertas de escorts de luxo em Berlim, que deletei às pressas, dando lugar a cenas de sodomia, que deletei a muito custo, e um travesti da pica enorme só consegui apagar arrancando o fio da tomada. Posterguei meu serviço, subi ao quarto e me recostei na cama curioso pelos livros novos, talvez os primeiros de toda uma vida que eu me permitia folhear sem terem passado pelas mãos do meu pai.”
 
Fruto de um relacionamento de Sérgio Buarque de Holanda com uma mocinha alemã de Munique, Anne Ernst, o meio-irmão alemão do autor teria, se fosse vivo, cerca de 90 anos. Na ocasião, ainda bebê, foi registrado com o nome de Sergio e o sobrenome da mãe. De volta ao país, o autor de Raízes do Brasil só voltou a ter notícia da namorada e do filho durante a Segunda Guerra Mundial, quando Anne escreveu ao ex-namorado pedindo documentos que provassem que o menino não tinha sangue judeu a fim de proteger a criança dos nazistas e entregá-la ao estado para ser adotada. Chico e os irmãos, a partir daí, perderam seus rastros. Nunca conseguiram, até recentemente, conhecer o destino desse irmão alemão. Mas quando Chico viajava à Alemanha, “ficava olhando e imaginando como ele seria.”
 
Sem dúvida, uma história e tanto.
 
Nem sempre a carreira de escritor de Chico, iniciada nos anos 60, é tão valorizada quanto sua obra musical. E apesar de sonhar, quando rapaz, em ter seus textos publicados nos grandes jornais, a sua primeira aparição na imprensa foi numa manchete do jornal Última Hora, de São Paulo: “Pivetes furtaram um carro: presos”. A imagem de Chico e um amigo apareciam com os olhos cobertos por tarja preta. Haviam “puxado” um carro para dar umas voltas na noite paulista, brincadeira comum na época. Chico e amigo acabaram na cadeia e condenados a sair à noite desacompanhados apenas quando completassem 18 anos de idade.
 
Uma visão curiosa, a do crítico José Castello, entusiasta da obra literária de Chico, é quando aponta a angústia como um sentimento dominante na vida dos personagens nada serenos do filho de Sergio Buarque. Eles são “corações aflitos”, como escreve. E ressalta:
 
“ Penso no ghost writer José Costa, do romance Budapeste. Uma intensa aflição o domina desde as primeiras páginas do livro. Para começar, pela própria condição de ghost writer, isto é, de fantasma — que escreve em nome dos outros, e nunca de si mesmo.”
 
“ (...) Também a angústia domina a existência de Eulálio Montenegro d’Assumpção, o protagonista do premiado Leite derramado. Supostamente, Eulálio agoniza em um leito de hospital, no qual se põe a narrar a história de sua vida. Mas para quem ele narra — para a ex-mulher, Matilde, para a filha, Maria Eulália, ou para a enfermeira do hospital? Tudo se complica ainda mais se colocamos em dúvida a condição do protagonista: ele, de fato, agoniza, ou, em vez disso, enlouquece e pensa que agoniza? Vive, assim, uma realidade intermediária, um mundo prestes a tombar. Um mundo sem fronteiras, sem forma.”
 
E em Estorvo: (...) O próprio título sugere o estado que envolve o protagonista: incômodo, embaraço, desconforto. “Não há uma origem precisa para seu mal.”
 
Desconforto e embaraço: sem querer colocar Chico no divã do psicanalista, por sinal divã que quase hoje nem existe mais, talvez a angústia por conta da timidez diante daquele pai/personagem, o professor e historiador Sérgio, intelectual referência no país, poderoso na cultura e erudição, mas que o preteria em nome de Mimmo, seu personagem/irmão, nas conversas que preferia manter com ele sobre álbum de figurinhas...
 
Um episódio ocorrido no começo dos 60, quando Chico chegava ao Rio de Janeiro, a Copacabana, e tinha acabado de compor a canção Pedro Pedreiro (que já anunciava o que viria depois) pode oferecer a dica de quanto a timidez pode gerar a angústia. Os grandes tímidos o sabem.
 
Maria Amélia, a mãe, pedira a um nosso grande amigo paulista comum, Aparício Basílio, uma das personagens, na época, mais conhecidas da cidade, que falasse com quem conhecia na imprensa carioca para fazer alguma coisa, nota, entrevista, divulgação do trabalho do jovem filho que vinha tentar a sorte no balneário. Aparício nos ligou e logo atendi seu pedido. Telefonei para Chico marcando uma entrevista no apartamento que ele acabara de alugar, no Posto Seis. Eu detestava entrevistar pessoas, mas pedido de Aparício não podia recusar.
 
Foi um encontro memorável de dois grandes tímidos (pelo menos na época): o garoto, de um lado, fumava, silencioso, sem saber onde punha as mãos e era difícil de falar embora educado; e a repórter, titubeante, com a própria timidez potencializada por aquela timidez do entrevistado - até que me conformei em calar de vez.
 
Chico então toma a iniciativa e sugere descermos para tomar um café no botequim da calçada. Grande ideia. Descemos em completo silêncio no elevador, os dois, tomamos o cafezinho quase sem abrir a boca exceto emitindo algumas abobrinhas e nos despedimos. Saí aliviada.
 
Depois, publiquei apenas pequena nota numa coluna da sessão do jornalão no qual eu era uma editora. Pois se não havia entrevista! Ela se referia à excelência de Pedro Pedreiro e à chegada ao Rio do filho de Maria Amélia.
 
Nunca mais cruzei com Chico Buarque na vida. Mas percebo pela sua dedicatória, agora, de O irmão alemão, de sutil delicadeza - ”Para os dois Sérgios.”- que é coisa de quem continua sendo um tímido autêntico.

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